sábado, junho 04, 2005

A TOCA

A Toca é um restaurante de comida típica cubana, localizado na rua Traipu em Perdizes, bairro de São Paulo, tornou-se memorável não somente pela peculiaridade de preparar a culinária da terra de Fidel, mas também por acolher em seu recinto personalidades que até então viviam na clandestinidade e buscavam lugares seguros para se reunirem e discutir sobre a repressão que assolava o Brasil naquele momento de ditadura. Os saudosos como Betinho, Henfil, Frei Tito entre outros... que além da militância, apreciavam deleitar-se com a cozinha cubana, já pisaram no Toca.
Em setembro de 2002, dia 23 por volta das 19 horas de terça-feira, frei Betto, escritor e frade dominicano, hoje assessor do presidente da república no programa Fome Zero, considerou a importância histórica do restaurante e como grande devoto da culinária, lançou nessa noite um de seus livros intitulado “O Alfabetto – Autobiografia Escolar”, um belo livro onde conta de maneira romanceada seu diário estudantil, apresenta ao leitor suas experiências desde o jardim de infância na cidade de Belo Horizonte, as sábias críticas de seu pai aos livros infantis indicados pela professora, até os atribulados momentos em que participou dos movimentos estudantis no ginásio, colégio e universidade.
Não tenho a audácia de apresentar-me como fã número um de frei Betto, garanto entanto, que li ao menos um terço das dezenas de livros que publicou, acompanho há algum tempo seus textos sobre espiritualidade, militância, meditação e até sua declarada paixão por Santa Teresa de Ávila.
Ao trabalhar durante nove anos em uma editora, conheci vários editores que passaram pela redação, certo dia, ao chegar no escritório o então editor Nilton Pavin, ao me ver trazendo à tira-colo um exemplar surrado, encontrado em um sebo da avenida Paulista, o livro “Fidel e a Religião”, apontando para o livro com o indicador diz: Conheço o frei Betto, é meu amigo. Quer conhece-lo? De soslaio, fito o editor de rosto rosado e cabelos alvos, não assimilo o convite. Processo o diálogo novamente e vou até a mesa de Pavin, ele não somente reafirmou sua amizade com o escritor, como também convidou-me para o coquetel de lançamento do novo livro de frei Betto na Toca.
Noite de terça e lá estou eu, na rua Traipu, não há movimentação alguma e estranho se realmente há um lançamento naquele dia. Chego timidamente à entrada do restaurante e com sorriso de canto cumprimento o manobrista, à frente do restaurante duas vagas para carro recuam a fachada da casa antiga e omiti a quem se aproxima pela mesma calçada a recepção. De pronto vejo o autor ladeado de exemplares da nova publicação em sua mesa, autografando-os para os convidados.
Uma hora se passou e nada de Pavin encontrar-se comigo, não achei conveniente precipitar-me ao coquetel. Enquanto divago com meus pensamentos um carro pára, o manobrista simpaticamente vai ao encontro do motorista intencionado em estacionar o veículo, olho com mais atenção quando sai do veículo Lula, favorito nas pesquisas da campanha presidencial, não saberei informar qual de nós dois ficou mais impressionado, ele por não haver assédio algum de minha parte, não ousei tietar! , ou eu mesmo, por ficar frente a frente com o mais provável sucessor à presidência e expressei um simples “boa noite, Lula”. Telefonei ao celular de Pavin e certifiquei-me de que ele não apareceria, encontrava-se em viagem voltando do Pantanal, não conseguiria chegar em tempo ao coquetel, pede-me que me desculpe com frei Betto em seu nome.
Compro um exemplar do livro com a simpática senhora, mãe do autor, numa improvisada banca de livros, com os títulos por ele publicado. Peço a frei Betto que dedique o livro à Marcella, minha noiva e a mim. Com a cabeça baixa em direção ao exemplar, o autor escreve a dedicatória, aproveitando o momento lembro de referir-me à Pavin. O Nilton Pavin pediu desculpas por não comparecer, pois não chega em São Paulo hoje. Ele volta o olhar em minha direção. Por favor, me chame de Betto, o Pavin é meu guru em religiões orientais, sabia? Sorrindo, ele me entrega o livro. Aproveite a comida. Diz ele.
Restaurante cheio, paro e lanço um olhar panorâmico para encontrar alguém conhecido, ou até mesmo o toalete. Sempre funciona, localizo logo adiante dois amigos, Lígia e Fábio, que ao me avistarem sinalizam para que os acompanhe. Aparentavam inquietos e agitados. Viu quanta gente? Sim, respondo à Lígia. Ela aponta para minha esquerda, olho, e me deparo com o senador Eduardo Suplicy, levanto para dar passagem a ele, que singelamente pousa a mão em meu ombro e agradece. Sorrindo, olho para o canto do restaurante em que o senador se encontrava, vejo impecável num terno risca de giz, o candidato á deputado Vicentinho, lado a lado com Lula. Sento, meus dois acompanhantes acariciavam seus exemplares autografados quanto juntasse a nós Tomás e sua namorada, esse familiarizado com todos, pois além de morador da região, fazia parte do grupo de oração em que a maioria ali participava, na paróquia local.
Com o novo integrante em nossa mesa, as atenções voltam-se para nós. O cônsul cubano, veio prestigiar Betto e aproveita para cumprimentar Tomás, Fábio estarrecido, com a ponta do sapato acerta Lígia por baixo da mesa. Pedimos um vinho, colocamos a conversa em dia.
Abri meu livro e li a dedicatória, o livro é dedicado à Adélia Bezerra de Meneses, além do manuscrito para Marcella, que pedi gentilmente à Betto.
Um mafuá, conversas atrás de mim tornam-se mais e mais próximas. Ela, a própria homenageada por Betto, Adélia, pára ao meu lado com seu filho e vai ao encontro de Tomás, beija-o com carinho maternal. Tomás, posso abusar e pedir ao seus amigos que façam companhia com o meu lindinho? Afinal, todos os jovens simpáticos estão nessa mesa. O jovem tímido senta ao lado de Tomás, Adélia nos cumprimenta agradecida. Fábio continua com sua atenção voltada ao nosso ilustre companheiro de mesa, que se levanta e traz pela mão uma senhora, de aparência frágil e com uma alegria que contagiava a todos. Essa é Ana Dias, viúva de Santo Dias. Ana, com carinho abraça Lígia, Fábio, eu, a namorada de Tomás e o jovem tímido de Adélia, e se despede de todos. Adélia volta e com sigo leva o jovem tímido, ficando em nossa mesa um lugar vazio, que segundos depois é ocupado por Betto.
Betto naquela semana havia perdido seu pai, que faleceu poucos dias antes do lançamento, mesmo assim, com uma riqueza de espírito, bebe conosco e faz convite para um retiro em Ibirité, cidade próxima à Belo Horizonte, onde ministraria uma orientação sobre a prática da meditação cristã, inspirado em Santa Teresa de Ávila.
Estamos sozinhos novamente, levanto para despedir-me e ofereço carona à Fábio e Lígia até o metrô Marechal Deodoro, eles aceitam.
Ao sair do restaurante A Toca, Fábio, extasiado em felicidade e aparentemente saltitante diz: Se alguém me perguntar se conheço o Lula, o Betto ou o Suplicy, direi sim, conheço. Mas se um dia me perguntarem se conheço o Tomás, direi sim, desse eu sou amigo.Rimos até a estação do metrô.

O Livramentense

nota: O conto A Toca foi ganhador da promoção Zuenir Ventura - Minhas histórias dos outros, divulgada na revista Idiossincrasia através do site Portal Literal e da editora Planeta.
http://portalliteral.terra.com.br em 01/09/05