sexta-feira, dezembro 01, 2006

"Haja Hoje para tanto Ontem"
(Paulo Leminski)

quarta-feira, julho 19, 2006

"Desconfia dos livros, que papel aguenta muita lorota."
Graciliano Ramos

terça-feira, julho 18, 2006

PRAÇA ROOSEVELT OU BUENOS AIRES

Quando um corpo cai, o som é oco, falta algo. Talvez ali, naquele instante que precede o impacto, a angústia já previna e a alma se desprenda espantada antes mesmo do fim, quando deixa de existir, pois o corpo está lá, se assim podemos chamá-lo.
De cá, os galhos de árvores não deixam nossa visão descrever com exatidão a altura e o andar de onde o corpo tombou. Uma manhã tranqüila demais, um policial ali na praça uma hora daquelas é raro de ver, ainda mais dando ouvidos a uma senhora que se exala de tanta atenção recebida e que, para aproveitar a oportunidade, detalha todas suas queixas.
Ah, está ai a explicação, que distração. O que se apresenta esparramado ao chão, a alguns passos dos dois personagens explica a cena não cotidiana. A cor vermelha e viscosa escorre por baixo do lençol branco em meio a rua, todos conhecem aquela cor em frente a banca de frutas que não estava presente naquele momento para testemunhar o som triste amortecido pelas poucas frutas largadas ao chão.
Talvez Maria, os seios são fartos, é uma Maria sim, o noticiário discorda e diz que é João, quem vai certificar as intimidades é o IML, mas a senhorinha chamava por ela, falava por ela, e com um carinho particular como para com ela.
Amava demais, essa é a causa, dizia a senhorinha. Todos morrem santos, ela ou ele ainda estava pecando, santo que pecou tem mais substância. Amava demais um menino, que amava demais a carne e não lhe amava mais, afinal ela era ele, é contra a natureza, e ele já sabia o que era ser homem. Ela também sabia o que era ser homem, tanto que não suportava e resolveu ser ela, e gostou! E ele menino também gostou de ter ela, e assim ser ele, o homem.
Amava de menos, essa sim é a causa. Todos dizem que houve discussão, ninguém diz qual, e sabemos o fim, e o que todos ouviram com certeza foi a queda.
Na Praça Roosevelt agora é silêncio, ninguém lembra do nome dela ou dele, somente o som oco do corpo ao cair, e que o corpo tinha seios fartos, que o motivo era amar demais e que pecava.
Já na Praça Buenos Aires, outro corpo cai, e esse era pleno, era ela, o senhorzinho tinha certeza, essa era ela, é aquela da novela, não tinha oco, só tinha pena, pois era santa.

O Livramentense

ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO
E o que queremos dizer com um "nome"? A questão, ou uma forma da questão, é proposta em Através do espelho. Poucos capítulos depois de atravessar o bosque sem nome, Alice encontra a figura desconsolada do Cavaleiro Branco, que, do modo autoritário próprio dos adultos, lhe diz que vai cantar uma canção para “confortá-la”. “A canção é chamada”, diz o Cavaleiro, “Olhos de eglefim”.

“Ah, é esse o nome da canção?”, disse Alice, tentando interessar-se.
“Não, você não está entendendo”, disse o Cavaleiro, parecendo meio contrariado.
“É assim que se chama o nome da canção. O nome verdadeiramente é ‘O homem velho, muito velho’.”
“Então eu devia ter dito ‘É assim que se chama a canção’?”
“Não, não devia: isso é outra coisa. A canção se chama ‘Modos e meios’. Mas isso é só como ela se chama, veja bem!”
“Mas qual é a canção, afinal?”, disse Alice, já completamente desnorteada.
“Já estava chegando ao ponto”, disse o Cavaleiro. “A canção, verdadeiramente, é ‘Sentado sobre uma porteira’. A melodia fui eu mesmo que inventei.”

Alberto Manguel – No bosque do espelho, 2000.

domingo, abril 09, 2006

"Quando alguém pergunta a um autor o que ele quis dizer, é porque um dos dois é burro"
Mário Quintana

segunda-feira, novembro 14, 2005

MESSENGER

-----Mensagem original-----
De: amiga1 [mailto:amiga1@algumacoisa.com.br]
Enviada em: segunda-feira, 14 de novembro de 2005 19:29
Para: sabeamiga@contamais.com.br
Assunto: O amor mais duradouro e persistente é aquele que nunca foi correspondido

>>Veja minha amiga, sou jovem, ainda beiro meus vinte e três anos e já estou com casamento marcado em uma bela capela aqui perto de casa.
>>Sem festa, somente um almoço para a família.
>>Como?
>>Claro, bem... tenho muito carinho por ele. Ele é trabalhador, nosso canto já tem a nossa carinha... uma persiana, um colchão e um exemplar da bíblia. Não posso reclamar sabe?
>>Nossa! Você ainda lembra daquele crápula?
>>Sim, de vez em quando escrevo para saber como ele está, guardo o e-mail dele. Sorte que ele nunca mudou de conta, já são cinco anos né? Já viu alguém manter um e-mail tanto tempo assim?
>>Sim, concordo. Talvez seja para ter notícias minhas, sempre escrevo quando estou com saudades.
>>No “Assunto” nunca escrevo nada, sabe como é? Dependendo do horário ele responde automaticamente.
>>Nunca, ele sempre omite o telefone e onde mora.
>>É, ele se esquiva. Digo que o meu noivo é mais bonito que ele, que é loiro de olhos azuis. Até parece que ele fica mais feliz assim.
>>Lembro do nosso último encontro, foi no metrô ao sairmos do teatro.
>>De jeito nenhum, apesar dele ser mais velho é tão duro quanto o meu noivo, ao invés de irmos ao motel ficamos embaraçosamente aos abraços no metrô, ele excitado e eu louca, e quando sugeri ir com ele até sua casa... nunca mais nos encontramos.
>>Sim, escrevo mensagens sempre, pelo menos uma por mês.
>>Quando faço um convite simples para almoçarmos juntos, a resposta é sempre “não”.
>>Você tem razão amiga, algo me diz que ele mantém esse e-mail somente para ter noticias minhas, e saber que pelo menos uma pessoa ainda gosta dele.
>>Quem? Meu noivo?
>>Não, nunca escrevi nada pra ele.
>>Ele não tem e-mail.

O Livramentense

domingo, novembro 13, 2005

PARAMNÉSIA II

Um calor infernal e eu ali, embaixo do cobertor fingindo dormir. Hoje faço quinze anos e tudo que tenho é essa imagem obscura na penumbra da noite, sussurros.
Vejo essa mulher, que sempre dividiu o amor de meu pai, sem o menor respeito ou pudor, meu aniversário, e ela ali aos beijos e abraços com outra mulher. Sempre sonhei ter o meu próprio quarto, sempre imaginei possuir um homem digno e fiel como meu pai.
Com minha pouca idade já compreendo do que um homem necessita e gosta, e gosto!. Se ao menos minha mãe desse o valor necessário àquele homem, que me privou de possuí-lo.
Não suporto mais o calor, acelero minha respiração e as duas também. Algo familiar naquela mulher a satisfazer o sexo de minha mãe, sou eu, eu mesma a trair meu amado pai.
Imediatamente avanço em direção a cama das duas, eu e minha mãe, não reajo, não existo. Uma brisa causaria maior reação do que minha atitude.
O desespero inquieta meus sentidos, não tenho quinze anos naquela cama, somam-se rugas, suor transpirado e consumidos naquela cena grotesca. Busco algo para recordar-me de meu pai, e acima da cabeceira da mesma cama, lá esta ele... conciliador, algemado a uma cruz de Santo André, acompanhando com o olhar todos os meus movimentos e meus com minha mãe.
Em minhas mãos percebo uma boneca de palha linda, com olhos cheios de desespero, destroço aquela aberração e percebo algo em meu próprio ventre volumoso.
Mãe, socorro! Não me ouve? Socorro! Papai gira em sua cruz com velocidade espantosa, mamãe se recompõe, não estou mais naquela cama, não estou mais velha e nua. Não há cena de relação alguma, não existo ali, mamãe dorme um sono calmo, acolhida pelo meu belo pai.
Minha cabeça gira, estou só em meu próprio quarto, decorado com pelúcias rosas, e no canto iluminado, um aquário de peixes dourados faz um som tranqüilizador.
- Filha, acorda!
- Mãe, tive um pesadelo horrível.

O Livramentense

terça-feira, outubro 25, 2005

LETTRE D´AMOUR II

São Paulo, 25 de outubro de 2005.


Paciência, esse é o alicerce que me sustentou desde aquele maio, em que você polidamente e resguardada disse sim, mas que somente após dias revelava a todos seu real sentimento.
Aguardo cada momento para em breve tê-la como companheira e metade de tudo que basta para me completar, andar lado a lado pelas ruas despertando a inveja com o nosso companheirismo, afeto e amor nu e descarado.
Gloriosa é a sensação da certeza de viver ao seu lado, eternamente, acordar e viver, olhar para o lado e vê-la sorrindo e dizendo o quanto me ama ao responder “mais que a metade” sem notar o idioma usado, je t´aime!
Descobri no desalento que tive somente um amor, uma primeira paixão, e que a encontrei ainda nessa vida, esteve tão longe de meu olhar e nunca ausente em meu coração. Hoje digo que você é o único e verdadeiro amor que já senti, cada dia longe de você a esperar, somente confirma essa certeza, você é e sempre será o meu único e primeiro amor, minha companheira, minha amada paGu.


O Livramentense

quarta-feira, setembro 28, 2005

LETTRE D´AMOUR I

São Paulo, 23 de julho de 2005.
sábado 10:30h

Hoje acordei calmo, a noite que passou levou com ela toda dor. Não, foi o dia que surge lembrando-me que a dor não há. Necessito abrir a janela, e ao contrário da noite, não olho para as lágrimas que caem, a luz volta meu olhar em direção ao azul desse dia quente a camuflar o inverno. Eis o melhor remédio, a luz.
Não é o momento de partir, os dias passam lentos, e mesmo assim não reconheço a imagem no espelho, cadê o sorriso espontâneo? Vejo olhos tristes e avermelhados. Encontrando a melhor forma de chorar, cubro o rosto, ouço meu coração, a sua sintonia traz a calma. Novamente olho para o espelho e não me vejo, vejo você refletindo sua nudez a rir-se pra mim, aguardando aquele elogio, que nos fez renascer e descobrir um ao outro. O espelho nunca mentiria, e naquele dia ele revelou o que há de mais belo e puro, e aquele setembro jamais partiu de minhas lembranças.
Aprendi por muitas vezes que tudo passa, passará e somente o que é bom permanece, e recordamos para vivê-lo. Não posso privá-la de sentimentos e emoções, não sou capaz de controlar em mim nada! Sou Ridículo!
Hoje você esta mais madura, sua beleza mais ativa, encanta tudo. O amadurecimento não vem sem experiências, você tem hoje estatura e força no momento em que minha alma envelheceu e o abismo obstruído por minha determinação sucumbiu.O que me salva, o sempre me encantou, seu sorriso! Que me faz querer beijá-la nos cantos de seus lábios e dizer o qual importante medida vale a metade, e se essa metade de amor que sinto for retribuida, como serei feliz!.
Quero de volta o setembro, o maio e o fevereiro. Quero perder todos os invernos tristes que aguardo, para viver todos os meses e estações junto a ti. O sol revelando o dia e a noite para admirá-la e não temê-la.
A vida desprovida da morte gera o desespero e causa o suicídio, aprendi isso cedo e por isso vivo cada instante para eternizá-lo, pois a vida somente vale algo se depois dela, inda teremos filhos.
O que será mais belo do que juntos, descobrirmos novas palavras? Palavras que somente hoje traduzem aquele setembro, ou melhor! Aquele beijo na praça, quando você segurou minha mão pela primeira vez.

O Livramentense

quinta-feira, setembro 22, 2005

SÃO GONÇALO DO RIO BAIXO


Na rua São Gonçalo do Rio Baixo, nada acontece. Pouco se vê nessa rotina monótona, além, é claro, do morro em frente chamado Jardim Vista Alegre. “Vista Alegre”... realmente uma antítese de mau gosto. O que nos apresenta Vista Alegre não é bonito, tudo é à vista, tijolos e telhas esverdeados, harmonizando com as paredes úmidas e desalinhadas. Lá toda casa tem o seu próprio barranco, sustentado somente pela fé do morador.
Desenhadas no asfalto, linhas brancas semelham com correntezas de um rio; rio abaixo desce os carrinhos de rolemã, que corajosos seguem em disparada traçando longos traços no asfalto. Não recebemos cartas, não adianta muito, não tenho conhecimentos nem de leitura, nem de escrita, pai e mãe pouco sabem. Minto ao dizer que não conheço a escrita, posso afirmar que desenho, e bem o nome de minha mãe, de meu pai e claro, o meu. Sempre olho a placa azul, com letras brancas em alto relevo identificando o nome da rua no bairro conhecido como Parque Tietê, onde todos afirmam que é Cachoeirinha, que por si só já é longe de tudo.
A casa em que eu resido se situa numa esquina, ela é pintada de amarelo e as janelas e porta são azuis, tem muros baixos, quintal amplo e germinado onde pai cultiva couves. Nos acomodamos todos em um único quarto, já que a casa tem somente dois cômodos, o outro é a cozinha. Na esquina oposta, a caminho da pré-escola, tem um terreno espaçoso e vazio onde passo de manhã para encontrar com a tia Maria do Céu todos os dias da semana. Vou sempre só, pois é a cerca de minha casa e mamãe trabalha muito, nem vi pai sair de casa de tão cedo que ele foi trabalhar.
Hoje a rotina monótona chegou ao fim, o terreno baldio que atravesso todos os dias não está mais vazio. Uma bela tenda vermelha e cheia de fios dourados abriga agora uma família de ciganos. E na rua São Gonçalo do Rio Baixo todos se preocupam, contornam o quarteirão para evitar os nômades com seus anéis de ouro, roupas vermelhas e pretas, com rostos expressivos e enigmáticos.
Gostaria de agradecer a esses ciganos da rua São Gonçalo do Rio Baixo, finalmente tenho a alegria de caminhar de mãos-dadas com a minha mãe até a pré-escola e apresentá-la à tia Maria do Céu, que me afaga com carinho e comenta com minha mãe: “Que belo sorriso hein?”


O Livramentense

quarta-feira, agosto 31, 2005

PARAMNÉSIA

Três sóis sustentavam-se num firmamento plano, rubro e de um infinito sem perspectiva, cada sol com sua particularidade, cada qual com sua cor, e todas primárias. A singularidade de cada uma dessas estrelas a lumiar periodicamente todos os sítios aprazíveis sob elas, quebra-se quando o astro maior e de cor mais clara circunda os outros dois sóis. Quando Crinaco e Enasta estão contidos em Cresu, os três astros transformam-se em um prisma ofuscante e opulento, de onde se precipita uma parajá suficiente para nutrir todos as criaturas existentes e inexistentes.
Sansa, um ser existente e belo desperta de uma letargia programada, seus captores de movimentos confundem-no, desconserta-se com seus membros inferiores e de anatomia simétrica. Ao caminhar Sansa não toca o solo que o sustenta, faz movimentos em torno de si mesmo buscando uma rota auxiliar e oposta a já definida e modulada em sua mente.
O sítio de Oseb, onde se encontra Sansa, é limítrofe ao norte pela Retônia, um deserto sem geografia e de substância volátil, que somente um Ivotaga é capaz de sobrevoá-lo sem consumir-se em chamas, lá a parajá não é capaz de tocar sua superfície. Ao leste uma muralha repleta de caifastre desintegra qualquer criatura existente e somente as inexistentes podem ultrapassá-la e até se alimentar dos frutos que ali brotam. Sansa projeta-se para o sul, pois à oeste está toda a memória e lógica fornecida aos existentes, esgota toda sua energia e não mensura o quanto resta para chegar à lugar algum, não existe horizonte naquele sítio, a perspectiva é desconhecida. Exausto, deitasse no leito do grande Exletes, fica ali entre galhos densos a impedir os reflexos de Cresu e ocultando seu corpo pálido e simétrico de qualquer outra criatura existente.
Sansa mesmo desorientado capta um som harmonioso a quebrar o silêncio, era um expressivo Lestoleuco que, com somente quatro membros era capaz de saltar e movimentar-se sem qualquer dificuldade, uma criatura inexistente, desprovida da mínima inteligência, por mais curta que fosse. Lá estava ele, o pequeno Lestoleuco a cantar, vívido e transparecendo felicidade, quando junto a ele outro de sua espécie aproximasse e um sobre o outro se transformam numa só criatura. Sansa espantasse com a abrupta cena de acasalamento e vê agora um só Lestoleuco, sem sexo definido e com um útero a brotar três rebentos, a matriz originada daquele casal ao poucos desintegrasse e surge no local uma flor branca de espinhos intimidadores.
Transparecendo uma crise inexplicável, o existente Sansa consome-se num sentimento jamais descrito em suas sínteses emotivas. Fica espantado ao ver sua própria imagem cruzar o leito do velho Exletes, todo o conhecimento e sentimento até então inexplicável, e numa medida insensata utiliza a extremidade de seu próprio tentáculo superior para abrir um veio na sua artéria principal, alimentando o leito seco do Exletes com uma substância viscosa e cintilante. Esgotado todo o sumo de sua existência, Sansa não tem êxito, resolve então abandonar seus membros inferiores e retornar a sua letargia programada.
Pontualmente uma nova parajá salta do prisma de Cresu, Crinaco e Enasta, o líquido precipitado daqueles sóis unidos dá inicio a uma nova transformação: surge um novo Sansa a partir dos membros inferiores ali deixados.O novo Sansa contém todos os conhecimentos e membros simétricos como o Sansa anterior, porém sua perfeição não ressurge no novo ser existente, esse percebe que a flor nascida do Lestoleuco não é branca, e sim púrpura como o céu, e que cada sol tem sua própria cor, o amarelo, o azul e o vermelho.
O novo Sansa se alimenta dos frutos da Caifastre e caminha pela Retônia sem se consumir em chamas, e canta uma linda harmonia sem notar que é observado e invejado por um ser que se diz perfeito, existente e sobretudo triste.

O Livramentense

nota: Texto publicado no portal Leia Livro
http://www.leialivro.com.br/texto.php?uid=6462
em 29/09/05 e divulgado no site http://www.analorgia.com em textos enviados outubro/05.

terça-feira, julho 26, 2005

VELÓRIO NO JARDIM BRASIL


Jardim Brasil, bairro de ruas estreitas onde crianças e adultos desconsideram calçadas e se arriscam num balé cambaleante entre veículos em movimento numa espécie de desafio. Uma região plana e repleta de sobrados inacabados em tijolos de oito furos sem emboço, quase não se vê o céu de lá, o céu tampouco parece olhar para “JB”. No noticiário, uma reportagem local chama a atenção do menino Japim.
Com os olhos vidrados Japim poucas vezes desvia a atenção para os pares de tênis pendurados pelos cadarços aos fios de eletricidade repletos de rabiolas e pipas. Aquele garoto negro, como muitos dali e resistente como poucos, traz no olhar uma tristeza comovente que se concentra cada vez mais ao aproximar-se do velório, havia uma necessidade de presenciar o semblante pálido dos dois jovens executados ali, perto de sua casa. Sua irmã Edilene mal se dá conta da gravidade dos fatos, sorri ludibriada pelo aparelho de tv divulgando sua miséria, vendo na tela de imagens distorcidas, a entrada do beco que dá de encontro a sua casa.
Ali estava ele, diante a saleta onde velavam o casal, seus pés ressecados calçavam sandálias gastas com correias presas por um grampo de cabelo, bermuda e camiseta esburacada, porém limpas e bem engomadas. No local Japim vestia-se a caráter, a seu lado, dezenas de meninas amigas de Penélope e Washington aparentando dezesseis anos, todas com barriga, grávidas como Penélope, com grandes decotes exibindo os seios já fartos de leite e calças de cintura baixa. Uma microfonia quebra o silêncio naquele recinto, ao lado do velório fica a igreja de Nossa Sra da Livração que inicia os preparativos para a celebração da missa. A aparelhagem de som causa um barulho ensurdecedor e todos os presentes no velório saem em direção a rua.
Japim permanece imóvel e sozinho na capela, arrasta suas sandálias para mais e mais próximo dos caixões de madeira simples, ornados de plásticos negros e fitas de papel laminado. Poucos cravos brancos cobriam os dois corpos adolescentes, as flores somente ocultavam algumas marcas e orifícios causados pelos tiros, foi a primeira vez que Japim presenciou a morte, e tantas outras já aconteceram naquele lugar. Numa esquina próxima, um cartaz em papel ondulado com caligrafia toscamente mal escrita com erres invertidos, anunciava em lista os nomes das vitimas então “apagadas” e expandia o terror a quem ainda mantinha-se vivo.
Já era noite quando Japim resolveu retornar para casa, arrastando o pé esquerdo para que a correia da sandália não soltasse, mantinha o olhar sempre baixo impressionado com a imagem dos furos, marcas azuis onde não via a abertura da carne, a gota de sangue anunciava o local por onde entrou os projéteis. “Que muito louco” – pensou ele. Uma vertiginosa dor o acometeu de repente; suas vistas turvaram-se e uma sirene de caminhão o faz recuar para a calçada. O suor em seu rosto repleto de acnes o traz de volta a realidade, pensou em sua família.
Empurrando um remendo de madeira sustentado por fios de arames, adentra em um corredor escuro e úmido, vários cômodos com pouca iluminação ficam para trás até chegar a da porta de sua casa, onde um homem magérrimo de cabelos crespos e com uma calva circular no topo da cabeça lembrando a imagem de São Benedito está sentado no batente da porta. Com uma faca de legumes enferrujada e gasta, seu Jorge cavuca os calos do pé e corta as unhas, vez ou outra leva a mão em concha ao nariz para certificar-se do odor dos próprios pés. Ao lado da porta, uma pia de louças está repleta de pratos e panelas por lavar, onde Edilene recosta-se apoiada na perna esquerda com sua baixa estatura, braços desproporcionais e estrabismo exuberante.
Japim mira a cena e lágrimas vertem de seu rosto, em momento algum reconhece a miséria nua e explícita, pressente uma perda inevitável, toma consciência da vida plena que terá desse momento em diante. Agachado ao lado de seu Jorge, ali a cavucar, Japim apóia os braços no dorso do pai que se assusta com o gesto de carinho. Seu Jorge nunca fora presenteado assim nem ao menos por sua finada esposa, empalidece ao sentir as lágrimas quentes e úmidas do filho em seu corpo. Seu Jorge aconchega Japim em seu colo e pergunta: “O que foi Preto?”. Japim, em prantos: “Quero guardar esse momento”. Edilene, estrábica e escrachada, põe-se a rir.



O Livramentense
nota: O conto Velório no Jardim Brasil foi classificado na promoção Exercícios Urbanos-agosto, divulgada na revista Idiossincrasia através do site Portal Literal e da Livraria Cultura

sábado, junho 04, 2005

A TOCA

A Toca é um restaurante de comida típica cubana, localizado na rua Traipu em Perdizes, bairro de São Paulo, tornou-se memorável não somente pela peculiaridade de preparar a culinária da terra de Fidel, mas também por acolher em seu recinto personalidades que até então viviam na clandestinidade e buscavam lugares seguros para se reunirem e discutir sobre a repressão que assolava o Brasil naquele momento de ditadura. Os saudosos como Betinho, Henfil, Frei Tito entre outros... que além da militância, apreciavam deleitar-se com a cozinha cubana, já pisaram no Toca.
Em setembro de 2002, dia 23 por volta das 19 horas de terça-feira, frei Betto, escritor e frade dominicano, hoje assessor do presidente da república no programa Fome Zero, considerou a importância histórica do restaurante e como grande devoto da culinária, lançou nessa noite um de seus livros intitulado “O Alfabetto – Autobiografia Escolar”, um belo livro onde conta de maneira romanceada seu diário estudantil, apresenta ao leitor suas experiências desde o jardim de infância na cidade de Belo Horizonte, as sábias críticas de seu pai aos livros infantis indicados pela professora, até os atribulados momentos em que participou dos movimentos estudantis no ginásio, colégio e universidade.
Não tenho a audácia de apresentar-me como fã número um de frei Betto, garanto entanto, que li ao menos um terço das dezenas de livros que publicou, acompanho há algum tempo seus textos sobre espiritualidade, militância, meditação e até sua declarada paixão por Santa Teresa de Ávila.
Ao trabalhar durante nove anos em uma editora, conheci vários editores que passaram pela redação, certo dia, ao chegar no escritório o então editor Nilton Pavin, ao me ver trazendo à tira-colo um exemplar surrado, encontrado em um sebo da avenida Paulista, o livro “Fidel e a Religião”, apontando para o livro com o indicador diz: Conheço o frei Betto, é meu amigo. Quer conhece-lo? De soslaio, fito o editor de rosto rosado e cabelos alvos, não assimilo o convite. Processo o diálogo novamente e vou até a mesa de Pavin, ele não somente reafirmou sua amizade com o escritor, como também convidou-me para o coquetel de lançamento do novo livro de frei Betto na Toca.
Noite de terça e lá estou eu, na rua Traipu, não há movimentação alguma e estranho se realmente há um lançamento naquele dia. Chego timidamente à entrada do restaurante e com sorriso de canto cumprimento o manobrista, à frente do restaurante duas vagas para carro recuam a fachada da casa antiga e omiti a quem se aproxima pela mesma calçada a recepção. De pronto vejo o autor ladeado de exemplares da nova publicação em sua mesa, autografando-os para os convidados.
Uma hora se passou e nada de Pavin encontrar-se comigo, não achei conveniente precipitar-me ao coquetel. Enquanto divago com meus pensamentos um carro pára, o manobrista simpaticamente vai ao encontro do motorista intencionado em estacionar o veículo, olho com mais atenção quando sai do veículo Lula, favorito nas pesquisas da campanha presidencial, não saberei informar qual de nós dois ficou mais impressionado, ele por não haver assédio algum de minha parte, não ousei tietar! , ou eu mesmo, por ficar frente a frente com o mais provável sucessor à presidência e expressei um simples “boa noite, Lula”. Telefonei ao celular de Pavin e certifiquei-me de que ele não apareceria, encontrava-se em viagem voltando do Pantanal, não conseguiria chegar em tempo ao coquetel, pede-me que me desculpe com frei Betto em seu nome.
Compro um exemplar do livro com a simpática senhora, mãe do autor, numa improvisada banca de livros, com os títulos por ele publicado. Peço a frei Betto que dedique o livro à Marcella, minha noiva e a mim. Com a cabeça baixa em direção ao exemplar, o autor escreve a dedicatória, aproveitando o momento lembro de referir-me à Pavin. O Nilton Pavin pediu desculpas por não comparecer, pois não chega em São Paulo hoje. Ele volta o olhar em minha direção. Por favor, me chame de Betto, o Pavin é meu guru em religiões orientais, sabia? Sorrindo, ele me entrega o livro. Aproveite a comida. Diz ele.
Restaurante cheio, paro e lanço um olhar panorâmico para encontrar alguém conhecido, ou até mesmo o toalete. Sempre funciona, localizo logo adiante dois amigos, Lígia e Fábio, que ao me avistarem sinalizam para que os acompanhe. Aparentavam inquietos e agitados. Viu quanta gente? Sim, respondo à Lígia. Ela aponta para minha esquerda, olho, e me deparo com o senador Eduardo Suplicy, levanto para dar passagem a ele, que singelamente pousa a mão em meu ombro e agradece. Sorrindo, olho para o canto do restaurante em que o senador se encontrava, vejo impecável num terno risca de giz, o candidato á deputado Vicentinho, lado a lado com Lula. Sento, meus dois acompanhantes acariciavam seus exemplares autografados quanto juntasse a nós Tomás e sua namorada, esse familiarizado com todos, pois além de morador da região, fazia parte do grupo de oração em que a maioria ali participava, na paróquia local.
Com o novo integrante em nossa mesa, as atenções voltam-se para nós. O cônsul cubano, veio prestigiar Betto e aproveita para cumprimentar Tomás, Fábio estarrecido, com a ponta do sapato acerta Lígia por baixo da mesa. Pedimos um vinho, colocamos a conversa em dia.
Abri meu livro e li a dedicatória, o livro é dedicado à Adélia Bezerra de Meneses, além do manuscrito para Marcella, que pedi gentilmente à Betto.
Um mafuá, conversas atrás de mim tornam-se mais e mais próximas. Ela, a própria homenageada por Betto, Adélia, pára ao meu lado com seu filho e vai ao encontro de Tomás, beija-o com carinho maternal. Tomás, posso abusar e pedir ao seus amigos que façam companhia com o meu lindinho? Afinal, todos os jovens simpáticos estão nessa mesa. O jovem tímido senta ao lado de Tomás, Adélia nos cumprimenta agradecida. Fábio continua com sua atenção voltada ao nosso ilustre companheiro de mesa, que se levanta e traz pela mão uma senhora, de aparência frágil e com uma alegria que contagiava a todos. Essa é Ana Dias, viúva de Santo Dias. Ana, com carinho abraça Lígia, Fábio, eu, a namorada de Tomás e o jovem tímido de Adélia, e se despede de todos. Adélia volta e com sigo leva o jovem tímido, ficando em nossa mesa um lugar vazio, que segundos depois é ocupado por Betto.
Betto naquela semana havia perdido seu pai, que faleceu poucos dias antes do lançamento, mesmo assim, com uma riqueza de espírito, bebe conosco e faz convite para um retiro em Ibirité, cidade próxima à Belo Horizonte, onde ministraria uma orientação sobre a prática da meditação cristã, inspirado em Santa Teresa de Ávila.
Estamos sozinhos novamente, levanto para despedir-me e ofereço carona à Fábio e Lígia até o metrô Marechal Deodoro, eles aceitam.
Ao sair do restaurante A Toca, Fábio, extasiado em felicidade e aparentemente saltitante diz: Se alguém me perguntar se conheço o Lula, o Betto ou o Suplicy, direi sim, conheço. Mas se um dia me perguntarem se conheço o Tomás, direi sim, desse eu sou amigo.Rimos até a estação do metrô.

O Livramentense

nota: O conto A Toca foi ganhador da promoção Zuenir Ventura - Minhas histórias dos outros, divulgada na revista Idiossincrasia através do site Portal Literal e da editora Planeta.
http://portalliteral.terra.com.br em 01/09/05