terça-feira, julho 26, 2005

VELÓRIO NO JARDIM BRASIL


Jardim Brasil, bairro de ruas estreitas onde crianças e adultos desconsideram calçadas e se arriscam num balé cambaleante entre veículos em movimento numa espécie de desafio. Uma região plana e repleta de sobrados inacabados em tijolos de oito furos sem emboço, quase não se vê o céu de lá, o céu tampouco parece olhar para “JB”. No noticiário, uma reportagem local chama a atenção do menino Japim.
Com os olhos vidrados Japim poucas vezes desvia a atenção para os pares de tênis pendurados pelos cadarços aos fios de eletricidade repletos de rabiolas e pipas. Aquele garoto negro, como muitos dali e resistente como poucos, traz no olhar uma tristeza comovente que se concentra cada vez mais ao aproximar-se do velório, havia uma necessidade de presenciar o semblante pálido dos dois jovens executados ali, perto de sua casa. Sua irmã Edilene mal se dá conta da gravidade dos fatos, sorri ludibriada pelo aparelho de tv divulgando sua miséria, vendo na tela de imagens distorcidas, a entrada do beco que dá de encontro a sua casa.
Ali estava ele, diante a saleta onde velavam o casal, seus pés ressecados calçavam sandálias gastas com correias presas por um grampo de cabelo, bermuda e camiseta esburacada, porém limpas e bem engomadas. No local Japim vestia-se a caráter, a seu lado, dezenas de meninas amigas de Penélope e Washington aparentando dezesseis anos, todas com barriga, grávidas como Penélope, com grandes decotes exibindo os seios já fartos de leite e calças de cintura baixa. Uma microfonia quebra o silêncio naquele recinto, ao lado do velório fica a igreja de Nossa Sra da Livração que inicia os preparativos para a celebração da missa. A aparelhagem de som causa um barulho ensurdecedor e todos os presentes no velório saem em direção a rua.
Japim permanece imóvel e sozinho na capela, arrasta suas sandálias para mais e mais próximo dos caixões de madeira simples, ornados de plásticos negros e fitas de papel laminado. Poucos cravos brancos cobriam os dois corpos adolescentes, as flores somente ocultavam algumas marcas e orifícios causados pelos tiros, foi a primeira vez que Japim presenciou a morte, e tantas outras já aconteceram naquele lugar. Numa esquina próxima, um cartaz em papel ondulado com caligrafia toscamente mal escrita com erres invertidos, anunciava em lista os nomes das vitimas então “apagadas” e expandia o terror a quem ainda mantinha-se vivo.
Já era noite quando Japim resolveu retornar para casa, arrastando o pé esquerdo para que a correia da sandália não soltasse, mantinha o olhar sempre baixo impressionado com a imagem dos furos, marcas azuis onde não via a abertura da carne, a gota de sangue anunciava o local por onde entrou os projéteis. “Que muito louco” – pensou ele. Uma vertiginosa dor o acometeu de repente; suas vistas turvaram-se e uma sirene de caminhão o faz recuar para a calçada. O suor em seu rosto repleto de acnes o traz de volta a realidade, pensou em sua família.
Empurrando um remendo de madeira sustentado por fios de arames, adentra em um corredor escuro e úmido, vários cômodos com pouca iluminação ficam para trás até chegar a da porta de sua casa, onde um homem magérrimo de cabelos crespos e com uma calva circular no topo da cabeça lembrando a imagem de São Benedito está sentado no batente da porta. Com uma faca de legumes enferrujada e gasta, seu Jorge cavuca os calos do pé e corta as unhas, vez ou outra leva a mão em concha ao nariz para certificar-se do odor dos próprios pés. Ao lado da porta, uma pia de louças está repleta de pratos e panelas por lavar, onde Edilene recosta-se apoiada na perna esquerda com sua baixa estatura, braços desproporcionais e estrabismo exuberante.
Japim mira a cena e lágrimas vertem de seu rosto, em momento algum reconhece a miséria nua e explícita, pressente uma perda inevitável, toma consciência da vida plena que terá desse momento em diante. Agachado ao lado de seu Jorge, ali a cavucar, Japim apóia os braços no dorso do pai que se assusta com o gesto de carinho. Seu Jorge nunca fora presenteado assim nem ao menos por sua finada esposa, empalidece ao sentir as lágrimas quentes e úmidas do filho em seu corpo. Seu Jorge aconchega Japim em seu colo e pergunta: “O que foi Preto?”. Japim, em prantos: “Quero guardar esse momento”. Edilene, estrábica e escrachada, põe-se a rir.



O Livramentense
nota: O conto Velório no Jardim Brasil foi classificado na promoção Exercícios Urbanos-agosto, divulgada na revista Idiossincrasia através do site Portal Literal e da Livraria Cultura